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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Auxilio reclusão x Salário Mínimo num país de grandes contradições

por Gislene Ferreira dos Santos, assistente social formada na Universidade São Francisco, campus São Paulo


A convite da equipe da Pascom Brasilândia, fui convidada a refletir, sob a luz da assistência social, sobre algo que popularmente está sendo chamado de "Programa Bolsa-Marginal", cujo nome correto é auxílio-reclusão.

Circulou em listas de e-mail, nas últimas semanas, a seguinte mensagem:


Programa Bolsa-Marginal?
Você sabia que todo presidiário com filhos tem uma bolsa parasustentar a família, dado pelo INSS, pois o coitadinho não pode trabalharpara sustentar os filhos, pois está preso?
Chama-se "Auxílio-reclusão" e, pasmem... quem foi preso a partirde 01/12/2009, recebe R$ 752,12 (quanto está o salário mínimo mesmo,para aqueles que trabalham honestamente????)
O valor do auxílio-reclusão corresponde ao equivalente a 100% dosalário-de-benefício (existe uma tabela).
O salário-de-benefício corresponde à média dos 80% do maior salários-de-contribuição do período contributivo, a contar de julho de1994.
Para o segurado especial (trabalhador rural), o valor doauxílio-reclusão será de um salário-mínimo, se o mesmo não contribuiufacultativamente.
Pergunta que não quer calar:
1) Por acaso os filhos do sujeito que foi morto pelo coitadinho queestá preso recebem uma bolsa para seu sustento?
2) Já viu algum defensor dos Direitos Humanos defendendo esta bolsapara os filhos das vítimas?
É por isso que a criminalidade não diminui ...
Mate e assalte......
e ganhe o Bolsa - Bandido...!



Cabem algumas análises e esclarecimentos sobre o auxílio-reclusão:

De acordo com o site do INSS, o beneficio bolsa reclusão não é tão simples como esta colocado, pois as pessoas que estão reclusas precisam estar trabalhando para os familiares acessarem o benefício. Portanto, o beneficio auxilio-reclusão é previdenciário e constitucional, e tem por critério que o preso tenha contribuído a Previdência Social; ou incluam-se entre os chamados segurados especiais, nesse caso, independentemente de contribuição, para assegurar que sua família seja beneficiária enquanto este se encontra recolhido à prisão.

Para isto foram estabelecidos requisitos para a concessão do auxilio-reclusão como estar preso - restrição à liberdade imposta pelo Estado; ter baixa renda, ou seja, a renda do preso não pode ser superior a R$ 752,12; ter contribuído com a previdência social, ou ser segurado especial. Estando nesses critérios, os dependentes do segurado preso podem requerer o beneficio auxilio-reclusão.

Atualmente, cerca de 30.380 pessoas tem sido beneficiárias do auxilio-reclusão em contraponto a uma população carcerária de aproximadamente 470 mil presos. Essas condições reais para o acesso desmistificam que este processo seja para todo presidiário e com toda a facilidade descrita no e-mail anteriormente citado.

Esse beneficio financeiro, concedido pelo governo federal, inquieta os brasileiros que passaram a partir de janeiro de 2010 a receber o salário mínimo de R$ 510,00 reais. Há esse contraste com relação ao auxílio-reclusão que atualmente é de R$ 798,30. De acordo com pesquisa realizada com o Departamento de pesquisa Dieese, atualmente o trabalhador deveria estar ganhando por volta de R$ 1.987,26, aproximadamente 3,9 vezes mais que o atual salário mínimo de R$510,00.

Todos os cidadãos têm direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 e estes devem ser garantidos imprescindivelmente, mas me inquieta também tamanha contradição: o trabalhador que honestamente acorda todos os dias, enfrenta os transportes para chegar ao trabalho e retornar no final do dia, ganha uma miséria.

Segundo Paulo Freire "os sonhos são projetos pelo qual se luta" e em uma sociedade transparecem os interesses pelos quais defendem, preconceitos, que demonstram marcas da sua realidade, que devemos acreditar na possibilidade de mudança.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Texto Base da Conferência “Novos Cenários Políticos e Sociais e Processos de Comunicação”

extraído em http://muticom.org

por Pedro A. Ribeiro de Oliveira, professor no PPGCR da PUC-Minas, membro do ISER/Assessoria

Cenários: o teatro como metáfora da história.
Vou falar dos “cenários” não como fazem os analistas políticos (que usam a palavra no seu significado original francês de “roteiro”, como de um filme) mas no significado bem nosso de composição do espaço cênico para uma peça teatral. Se cabe a metáfora do teatro para a história, devemos investigar como foi construído o palco montado para o desenrolar da história de Nossa América e o lugar de cada ator em cena. O tema, porém, é menos a história política e social da América Latina e Caribe do que seus novos cenários. É para saber o que há de novo no palco, que faremos o contraste com o que já estava ali antes de entrarem em cena os personagens que hoje movimentam o drama da história.

Ato I: Abi-Ayala entra no sistema mundial
Remontemos ao século 16, quando se abrem as cortinas para a encenação de uma peça dramática: a conquista européia de Abi-Ayala, com seus dois extensos continentes unidos por uma faixa de terra e pelas ilhas caribenhas. Em cena, estão muitos povos, oriundos de duas correntes migratórias vindas da Ásia pelo estreito de Bering: uma há 14 mil anos, outra 3 mil anos depois. Há quem estime em cem mil anos a chegada do homo sapiens à América, mas para o nosso drama isso importa pouco. Importante é ter em mente que eles formavam culturas as mais diversas, desde sociedades complexas que integravam diferentes povos num só império, até as pequenas tribos de caçadores-coletores. De repente, esses povos veem surgir de grandes monstros marinhos homens muito diferentes deles trazendo uma arma mortal: a pólvora.
Embora fossem numericamente uma pequenina minoria, os bandos desembarcados dos navios europeus souberam tirar vantagem das diferenças e desavenças entre aqueles povos. Convencidos de serem portadores de uma civilização superior e contando com as armas de fogo como argumento definitivo de sua superioridade, em pouco tempo eles impuseram seu domínio. E os povos originários foram derrotados. Militarmente, culturalmente, politicamente, socialmente, religiosamente… No lugar das antigas sociedades tribais – desde as pequenas, até as mais complexas – foi construído um novo sistema destinado a racionalizar a exploração econômica desses povos em favor das metrópoles européias.
A chave do funcionamento desse sistema é magnificamente descrita por I. Wallerstein . Diferentemente dos impérios da antiguidade clássica, que impunham pesados tributos aos povos conquistados para se apropriarem de suas riquezas, o sistema mundial moderno transfere maior quantidade de riqueza por meio do comércio desigual do que pela política de pesada tributação. Ao vender caro seus produtos e comprar baratos os produtos coloniais, a metrópole transfere riqueza da periferia para o centro de modo aceitável, pois há uma troca aparentemente equilibrada entre as partes contratantes. É bem verdade que essa troca não é inteiramente livre, pois o mercantilismo em vigor naquele tempo dava ao Estado o monopólio comercial, o que terminava por favorecer a burguesia comercial da metrópole e sua parceira menor nas colônias.
Para funcionar a contento, o sistema requer a colaboração de duas classes radicadas nas colônias: a dos proprietários de terra – com o controle da produção – e a dos comerciantes – que escoam esses produtos rumo à metrópole. Formadas por pessoas vindas da Europa – brancas, católicas, instruídas – foram elas, e não os funcionários das cortes, que dominaram com poder quase absoluto as sociedades coloniais. Nesse cenário de três séculos, é clamorosa a desigualdade entre os personagens. Os proprietários e comerciantes, embora numericamente minoritários, dominam a cena, enquanto os remanescentes das sociedades tribais perdem sua autonomia e ficam na periferia do palco, para onde são trazidos também os africanos escravizados. Por vezes, esses personagens tentam ocupar os lugares centrais por meio de revoltas, rebeliões e formação de quilombos, mas esses gestos heróicos são esmagados sem piedade pelos donos do poder, se necessário com o apoio militar das metrópoles. Derrotada e humilhada, essa massa que perdeu suas raízes indígenas e africanas retorna para o único lugar onde cabem os perdedores: a atividade servil. É impressionante sua redução ao silêncio no teatro da história, como se toda essa massa humana não contasse. Só ouvidos apurados conseguiam ouvir sua voz, tão abafada que não parecia ser mais do que um murmúrio. Nem mesmo a Igreja católica, instituição encarregada de zelar pela moral e os costumes da sociedade, considerava inaceitável essa realidade opressiva.
Esse cenário colonial só foi mudado ao terminar o “longo século” da hegemonia holandesa, na década de 1780, quando a primeira grande crise sistêmica do capitalismo provocou a onda de revoluções que derrubou o “antigo regime” na Europa continental, levou à independência das colônias na América e transferiu a hegemonia mundial para a Inglaterra . Ao perder a sustentação política dada pela monarquia absolutista, o mercantilismo desmorona e abre a possibilidade de novas formas de comércio internacional, descartando o incômodo e burocrático monopólio estatal.
A hegemonia sistêmica da Inglaterra no século 19 faz muita coisa mudar em toda a Nossa América. A queda das monarquias absolutas na Europa enfraquece a dominação política sobre as colônias e permite o surgimento de movimentos em favor da independência. Esses movimentos aglutinam setores de diferentes classes sociais que clamam por uma sociedade na qual todos sejam sujeitos de direitos, conforme o preceito liberal triunfante na Europa e nos Estados Unidos. A independência traz com ela, mais cedo ou mais tarde, o fim do regime escravista, a soberania nacional, e algumas medidas favoráveis ao conjunto da população. Mas o sistema econômico mundial, fundado no mercado, não desabou ao esgotar-se o mercantilismo. Ao contrário, aperfeiçoou-se pela contribuição inglesa: a periferia continuará a transferir riqueza para o centro, mas de agora em diante de maneira mais sofisticada, por meio do livre-comércio e o financiamento externo da produção – com o seu consequente endividamento externo.
A elite modernizante que assume a liderança do processo de independência com um projeto de transformação social, não demora a ser barrada pelos grupos aliados ao comércio mundial e aos credores externos. Em alguns países, como o Brasil, essa barreira foi mais forte e tornou muito difícil qualquer mudança estrutural. Noutros, como o Chile, a Argentina e o Paraguai, o século 19 representou um grande avanço social e econômico. Mas mesmo onde houve esse avanço, ainda era enorme a distância entre as elites e as massas formadas pelos indígenas, afrodescendentes, migrantes pobres e todo tipo de mestiços também explorados pelo sistema de mercado regido pela lógica do lucro. Continuam a desempenhar o papel de coadjuvantes, ocupando a periferia o palco, enquanto a elite branca, rica e instruída, gerava setores modernos, que se revezavam com os antigos no papel de protagonistas. Bolívar é talvez o melhor exemplo dessa mentalidade liberal de origem européia enraizada na América: nacionalista, modernizador, mas incapaz de perceber a importância dos povos e culturas indígenas e afrodescendentes na construção das nacionalidades em Nossa América.

Ato II: O grito dos esquecidos.

A crise sistêmica da década de 1880, que se desdobrará na crise dos anos 1930 desarruma novamente o cenário ao dar início ao “longo século” da hegemonia dos EUA no sistema mundial. Nesse novo cenário, a dominação neocolonial torna-se mais próxima do que antes, pois os EUA veem Nossa América como seu “quintal”. Em muitos países, porém, ocorreram movimentos sociais em favor de mudanças estruturais na economia, na política, na cultura e na organização da sociedade. Líderes nacionais como Zapata (México), Marti (Cuba) e Sandino (Nicarágua), pretendiam refundar suas nações sobre novas bases e novos valores, e promoveram verdadeiras revoluções em seus países. Apesar de suas inegáveis contribuições para melhorar a situação das classes e grupos étnicos oprimidos, foram implacavelmente esmagados pelas forças militares e políticas conservadoras, por vezes em franca aliança com os EUA. Outros movimentos em favor de mudanças foram conduzidos por representantes da própria elite atentos às classes populares, como Vargas (Brasil), Cárdenas (México) e Perón (Argentina), que buscaram modernizar nossos países sem contudo mudar suas estruturas profundas.
Ao terminar a II guerra mundial (1945), consolida-se a transferência do pólo do sistema capitalista para os EUA e inicia-se a guerra fria contra a antiga Rússia, então governada pelo Partido Comunista que procurava estender sua influência ao mundo inteiro. Neste novo cenário, a doutrina de Segurança Nacional difundida pela Escola das Américas formava militares para combater tudo que contrariasse os interesses dos EUA em nome do combate ao comunismo – o grande inimigo do mundo livre. A repressão aos movimentos libertários não conheceu limites éticos, nem respeitou os Direitos Humanos, quando eles podiam de algum modo vir a abalar as estruturas de dominação favoráveis à hegemonia estadunidense. Essa estratégia revelou-se tão eficaz que, com exceção da revolução cubana de 1958 – que até hoje faz de Cuba uma nação ímpar em Nossa América – nenhum outro movimento social com objetivos de reformas estruturais teve êxito duradouro: as experiências revolucionárias da América Central e Caribe, apesar de todo o vigor da revolução sandinista, não conseguiram sobreviver às diferentes medidas de repressão ditadas pelos EUA.
Em 1992, ao se completarem 500 anos da chegada dos conquistadores europeus ao Caribe, um observador isento teria toda razão para afirmar que nada havia mudado na estrutura do cenário de Nossa América. Ela havia se modernizado, é verdade, havia crescido em população, havia feito a experiência de governos inovadores, havia visto muitas revoltas e movimentos sociais, mas continuava na mesma posição estrutural face ao sistema mundial de mercado: na periferia, contando apenas como exportadora de commodities, importadora de serviços e, principalmente, pagadora de uma dívida financeira contraída por governantes que nunca se importaram com a dívida social do Estado com seu Povo.
Aqui devemos dar uma parada na narração do drama teatral e examinar mais atentamente o seu cenário. Diferentemente do que via aquele observador, já em 1992 começavam a despontar mudanças fundamentais no cenário. Para percebê-las, contudo, é necessário perscrutá-lo com muito cuidado e atenção aos detalhes. (Na verdade, só agora essas mudanças são nitidamente perceptíveis. Há dezessete anos atrás, só artistas e profetas percebiam algo realmente novo no cenário). Nosso desafio, agora, é vasculhar com atenção o cenário que se apresentava em 1992, procurando ali o que havia de novo. Ao fazê-lo, perceberemos que a comunicação é talvez a maior responsável por essa novidade.

Intervalo: uma análise do cenário de 1992

Novo, de verdade, neste cenário é um personagem coletivo: os Movimentos Sociais. Fenômeno típico da segunda metade do século 20, os Movimentos Sociais contemporâneos são estruturalmente diferentes dos movimentos de protesto e das revoltas de outros tempos, porque não se limitam a defender os direitos de um grupo atingido pelo sistema opressor, mas, ao defenderem seus direitos, colocam em questão o próprio sistema e propõem alternativas a ele. Nessa abertura de visão, do particular ao geral e do específico ao sistêmico, reside sua radical novidade. Isso não significa, porém, que eles tenham surgido do nada: cogumelo só brota depois da chuva porque os esporos já se encontravam no solo à espera da água chegar.
Se examinarmos com atenção a composição da massa humana resultante da destruição das antigas estruturas tribais dos povos indígenas e africanos, que ocupou a periferia do palco enquanto a elite branca exercia sozinha o papel de protagonista do drama, veremos que não era uma massa inerte. Fora calada, é verdade, mas não inteiramente silenciada. Sua voz estava reduzida a um murmúrio quase inaudível, mas ali há comunicação, sim! Fazendo uso de linguagens que evocam mais do que descrevem, como a música (mais o ritmo do que a escala tonal), o mito, os ritos sagrados, as estórias e “causos”, ela elabora sua consciência do real: quem sou eu e quem são meus opressores, o que é o mundo e em quê ele deve ser mudado. Essa identidade se comunica de pessoa a pessoa, e assim atravessa longitudinalmente toda essa massa humana, mas o mais importante é que ela se comunica também verticalmente, de geração em geração. Ora, quando um saber passa de uma geração para outra e esta o assimila, ele se torna cultura. Aqui reside a chave do enigma dos Movimentos Sociais contemporâneos: eles são o fruto maduro de uma cultura popular de raízes ancestrais que o sistema dominante não conseguiu destruir.
Bem que o sistema cultural montado pela elite branca, católica, proprietária e instruída, tentou destruir a cultura popular. Sua estratégia de combate não foi de chamá-la a um confronto teórico, mas sim a desqualificação: inculcar a idéia de que a cultura popular é um não-saber e portanto não existe enquanto cultura. É o exemplo típico das expressões religiosas populares, desqualificadas pela categoria “religiosidade” que até hoje lhes é aplicada. Gente analfabeta, lavradora, pobre, afrodescendente ou índio, só pode ter “religiosidade” e não “religião” com a qual se dialoga… Se produz arte, é “folclore”. Se narra seu passado, são “lendas”. Seus conhecimentos são “crendices” ou “superstições”.
Em outras palavras, a elite – arrogante por deter o saber que lhe vinha da Europa, desde os grandes mestres gregos até a filosofia, as ciências e a tecnologia contemporâneas – sempre tratou com desprezo a cultura popular. Mas nem por isso ela desapareceu. Ela foi sufocada, abafada, desprezada e – pior – substituída pela produção cultural de consumo fácil difundida pelos meios de comunicação de massa, mas sobreviveu em alguns nichos onde os oprimidos iam se nutrir culturalmente. Terreiros, capelinhas rurais, rodas de capoeira, escolas de samba, grupos de pajelança e tantos outros espaços marginais à sociedade “bem constituída” tornaram-se centros aglutinadores da sabedoria popular. Curandeiros, rezadoras, pajés, pais e mães de santo, conselheiros e todo tipo de artistas encontravam nesses espaços refúgio para sua cultura de resistência. Até mesmo os e as cientistas sociais que mais tarde vieram estudá-los terminavam por ajudar sua sobrevivência, pois mesmo quando os desqualificavam, recuperavam e difundiam sua memória.
É dessa cultura popular que vão se alimentar os Movimentos Sociais que vieram a ocupar um espaço importante no cenário da segunda metade dos século 20. Seu nascimento teve a ajuda de muitas parteiras. A “educação de base”, a pedagogia do oprimido, os Centros de Cultura Popular, as Comunidades Eclesiais de Base com sua teologia libertária, foram, sem dúvida, parteiras desses Movimentos Sociais. No campo (das “Ligas Camponesas” ao MST e a Via Campesina) e na cidade (movimentos sindicais, de moradores), esses Movimentos congregam grupos socialmente marginalizados mas não se limitam a defender seus direitos, antes assumem causas mais amplas, nas quais os direitos específicos se articulam com os grandes Direitos Humanos e, mais recentemente, aos Direitos da Terra.
Quero afirmar que esses Movimentos Sociais nasceram da Comunicação em mutirão. Quero dizer com isso que os elementos constitutivos da sua consciência identitária foram elaborados e transmitidos num processo comunicativo de caráter anônimo e coletivo, sendo enriquecidos de geração em geração, à margem dos meios de produção e de divulgação cultural oficiais, como púlpitos, escolas, jornais, rádios e TV, academias de letras e de ciências e outros tantos a serviço do sistema cultural dominante. Por meio dos mutirões de comunicação populares os Movimentos Sociais constroem, pouco a pouco, sua consciência de quem são, o que é o mundo, quem se opõe a eles, e assim produzem suas utopias e projetos de transformação do seu mundo.
Voltemos, agora, ao cenário de 1992. A elite está tranquila: desde a queda do muro de Berlim, sua hegemonia parece inquestionável. Alguém afirmava que a Humanidade havia cumprido seu destino e chegado ao “fim da história”: o sistema capitalista representaria o que de melhor ela produziu… Os movimentos surgidos nos meados do século 20 e que de uma forma ou de outra acreditavam na utopia socialista, haviam sido esmagados pela repressão militar e agora estavam inertes, desmoralizados pelo desmoronamento do “socialismo real”. Os militares, por sua vez, já tinham saído de cena e dado lugar aos governos neoliberais. Mas algo novo estava sendo preparado para o ato seguinte.


Ato III: “outro mundo é possível”

Estamos apenas no início deste ato. O cenário é muito diferente daquele que encerrou o II ato, em 1992. A crise sistêmica de 2008 tirou de cena os personagens que aplicavam as receitas neoliberais, fez mudar a fala de outros personagens para que continuassem a argumentar em favor da excelência do capitalismo, trouxe para o cenário alguns personagens sinistros que querem empregar a violência para manter os privilégios que o sistema lhes dá, e – o mais importante – trouxe para o centro do palco os Movimentos Sociais que proclamam que “outro mundo é possível”. É para esta novidade do cenário que se descortina na primeira década do século 21 que vamos focar a luz.
Broto novo de uma antiga raiz, quase imperceptível no cenário de 1992, os Movimentos Sociais tornaram-se hoje personagem central no desenrolar do drama histórico de Nossa América e do Planeta. Apesar – ou por causa? – disso, sua fala continua sendo abafada por outras falas ou distorcida pelos comunicadores da cultura dominante, os quais não admitem uma alternativa ao “seu” pequeno mundo. Procuremos então conhecer melhor esse personagem e seu papel no drama da história.
O traço distintivo desse novo personagem é o de confiar mais na força resultante da mobilização das vontades do que na força impositiva do Estado. Por este motivo, eles desconfiam dos Partidos políticos que visam conquistar o poder do Estado. Neste contexto, vale a pena analisar a experiência da sua relação com o Partido dos Trabalhadores.
Nos Estados de democracia representativa, como o brasileiro, cabe aos Partidos políticos a mediação entre a Sociedade civil e o Estado. Essa mediação é necessária porque a lógica do Estado não é a lógica da Sociedade. O agir do Estado tem caráter obrigatório (impõe impostos, ordena gastos e atua por ofício mediante servidores públicos), enquanto o agir da Sociedade tem caráter voluntário (só tem o poder de motivar e mobilizar as pessoas). É por meio dos partidos que a sociedade escolhe quem, em nome dela, tomará as decisões no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo. Foi justamente por não reconhecer os partidos oriundos do regime militar como canais adequados para sua representação política, que os Movimentos Sociais participaram ativamente na fundação do PT. Diferentemente de outros partidos de esquerda, cuja tradição leninista tornava os Movimentos e organizações sociais uma “correia de transmissão” do partido, o PT nasceu da relação dialética entre os dois pólos. Ambos têm a mesma inspiração e utopia, mas atuam em campos diferentes: os movimentos sociais lutam na sociedade civil, enquanto o Partido busca exercer o poder de Estado na esfera política. Os Movimentos Sociais fazem mobilização popular, o Partido leva a questão para o âmbito parlamentar ou Executivo. Esta mediação foi crucial para o êxito da Constituição cidadã de 1988: os movimentos mobilizavam a sociedade em defesa de seus direitos, enquanto os partidos do quadro democrático-popular (embora em minoria no Congresso) os inscreviam na Carta Magna.
Chegando à Presidência da República, o PT trouxe consigo o projeto político oriundo dos Movimentos Sociais, mas, ao assumir a lógica do Estado, tornou-se partido do governo. Assim, os Movimentos sociais perderam o seu canal de representação perante o Estado. Continuam sendo uma força de pressão da sociedade, mas sua força não é respaldada pela força política, por falta de um Partido que o represente na esfera do Estado. Por isso, os Movimentos Sociais se descolam mais e mais dos Partidos políticos, como é o caso exemplar dos Movimentos indígenas, notadamente no México, Bolívia e Equador.
Consequência necessária dessa opção preferencial pela mobilização das vontades como forma de ação transformadora da sociedade, é que os Movimentos Sociais buscam mais a formação das consciências do que as conquistas políticas. Importa mais o processo a longo prazo (afinal, são cinco séculos de dominação!) do que a conquista de um poder e suas benesses efêmeras.
Por isso, esse novo personagem deixa desconcertados os analistas políticos, cujas categorias teóricas têm muita dificuldade para dar conta da sua realidade. Movimentos indígenas, de moradores, de lavradores sem-terra, de famílias sem-teto, comunidades eclesiais de base, pastorais sociais e tantas outras organizações sociais de repente entram no cenário com uma fala que não constava do roteiro previsto e incomoda os “donos do poder”. Mas é para este personagem que convém prestar atenção, porque aí reside a novidade. E o que diz ele?
A grande novidade é que os Movimentos sociais atuais já não se contentam mais em serem incluídos no sistema, pois aprenderam pela experiência da história que no sistema de mercado não cabemos todos. A atual crise financeira / ecológica / energética / de governança / ética marca uma “mudança de época” e exige propostas muito novas para a época que agora se abre. É o que surge no palco, com grande brilho, no ano de 2001: o Fórum Social Mundial, anunciando que “um outro mundo é possível”.
Os Movimentos sociais propõem então a construir um outro “mundo”, ou seja, outro sistema de relações humanas, que não se limita à sociedade humana mas inclua toda comunidade de vida do nosso Planeta. Não se trata, portanto, nem de inverter as posições dentro do atual sistema mundial de mercado, nem de consertá-lo (pois a natureza produtivista-consumista do sistema de mercado destrói o Planeta) mas de substituí-lo por outro sistema de convivência humana no Planeta. Um sistema solidário, ao invés do atual sistema competitivo. Um sistema que aure sua força nas raízes profundas da humanidade, mas não é volta ao passado (como se pudéssemos todos viver em aldeias rurais e pequenas comunidades urbanas). Enfim, os Movimentos sociais propõem um projeto que transcende as fronteiras nacionais e que se quer planetário. Em outras palavras, não pretende voltar a encenar uma antiga peça, cujo ato final se dá no século 16, mas inspirar-se na sabedoria dos antigos para elaborar um projeto de inserção harmoniosa da espécie humana – agora contando quase sete bilhões de pessoas – na grande comunidade de vida.
Muitos pequenos passos já estão sendo dados para a concretização desse projeto, como, por exemplo, a economia solidária, a democracia participativa, a valorização das diferenças culturais. São passos dados em âmbito local, que ainda não ganharam dimensão global, mas neles podem ser percebidos novos cenários não somente para a América Latina e Caribe, como para todo o Planeta.
Será isso uma utopia? Com certeza, sim, mas é uma utopia que merece muito mais credibilidade do que a utopia do mercado, da tecnologia onipotente, do progresso sem fim, enfim, a utopia incapaz de satisfazer o anseio humano por um mundo em paz. Sem medo da utopia, sem medo de ser feliz!
Para concluir, quero dizer que aceitei o convite para participar desse Mutirão da Comunicação porque vejo seu enorme potencial de contribuição para um “outro mundo possível”. Porque acredito na força histórica dos povos da periferia e na capacidade transformadora dos Movimentos sociais, quero participar desse grande mutirão onde aprendamos, uns com os outros e outras, a ouvir e amplificar a voz de quem foi silenciado mas não deixou de murmurar, de geração em geração, uma mensagem de esperança para quem vier depois de nós.